quarta-feira, 22 de outubro de 2008

CRÔNICA - Escrita em Arraial do Cabo-RJ, 11/10/2008

CRÔNICA - DONA ADALGISA


 "Dona Adalgisa, uma cearense de 83 anos, conseguiu me envolver com a conversa bem antes do fim da descida da Serra. Antes mesmo do pedágio de Xerém eu já tinha conhecimento de um monte de coisas a seu respeito, e também da proximidade entre nossos pensamentos."


 Estou de férias. E, por isso, aproveitei alguns dias deste período para vir a Arraial do Cabo-RJ, que sem dúvida é uma das cidades do meu coração. Durante a tranquila viagem entre Belo Horizonte e Cabo Frio, pude pensar um pouco sobre a minha vida e descansar a mente. Ainda na Serra de Petrópolis uma presença me surpreendeu, fazendo com que eu retomasse o Pensamento sobre José Datrino, o Profeta “Gentileza”, cuja vida relatei em crônica recente. 

 Enquanto o ônibus deslizava pelas sinuantes curvas da Serra, uma senhora ao meu lado tentava com dificuldade abrir a um pacote de batatas. Já havia notado, desde o seu embarque em Juiz de Fora-MG, seu perfil cauteloso. Não encontrando êxito, acabou conseguindo abrir o pacote com uma tesoura que cuidadosamente retirou de sua bolsa. Mas aquele rosto me parecia familiar. Era bem vestida, com um ar protetor e uma fisionomia que realmente não me era estranha. Após pentear levemente os cabelos muito lisos, retirou de sua bolsa uma pequena bíblia, que guardou no suporte apropriado para objetos na parte de trás do assento a sua frente. 

 Bem, mas como eu dizia anteriormente, ela havia conseguido enfim abrir ao pacote. Jamais imaginei que ela pudesse vir a me oferecer batatas, devido à sua aparente seriedade. Cheguei a afirmar isso mentalmente, quando mais uma vez fui surpreendido pela minha mania de pensar e imaginar as coisas: “Está servido”? Ela me interrogou com sua voz doce e rouca. Eu nunca fui fã de batatas. E, mesmo que fosse, acho que ainda assim não aceitaria, por questões pessoais. Agradeci com grande sinceridade e continuei observando a beleza distribuída por Deus ao Parque da Serra dos Órgãos. Alguns quilômetros se passaram e ela fez uma nova tentativa: “Tenho também biscoitos doces”. Agradeci mais uma vez, seguindo a viagem. E realmente começaria, ali, a viagem. 

 Dona Adalgisa, uma cearense de 83 anos, conseguiu me envolver com a conversa bem antes do fim da descida da Serra. Antes mesmo do pedágio de Xerém eu já tinha conhecimento de um monte de coisas a seu respeito, e também da proximidade entre nossos pensamentos. Neste trecho, ela me contou um pouco de sua paixão por Cabo Frio (cidade em que reside há 24 anos). Aposentada, é formada em Serviço Social e Enfermagem. Trabalhou por muitos anos no Rio de Janeiro, tendo posteriormente fixado residência na Região dos Lagos. Teve três filhos, ficou viúva e hoje possui alguns netos. Adal, como é tratada por alguns familiares, ainda me deu um apanhado geral sobre a atuação política nas prefeituras de Cabo Frio e Arraial do Cabo. Mas se empolgou mesmo quando confessei, sem rodeios, que não aprovava o atual governo e que não havia votado no atual presidente em nenhuma das duas eleições. Nesse instante ela resumiu um pouco dos melhores trechos da administração política no Brasil. Uma verdadeira aula para um “garoto” que acabara de completar 30 anos de idade. 

 A interação entre nossos espíritos foi tão grande que conversamos sobre música (mais precisamente Chico Buarque, Rita Lee e Noel Rosa), literatura, saúde, poesia, economia, criminalidade, futebol e principalmente assuntos relacionados ao ser humano e suas relações com o mundo. Também tivemos tempo para falar sobre culinária, quando ela me ditou, muito rapidamente, a tradicional receita do Baião de Dois, um prato típico de sua região. Eu salivava de vontade enquanto nos víamos presos num pequeno engarrafamento em Magé-RJ. Foi quando me desconcentrei um pouco da conversa para uma rápida apreciação do Corcovado e Pão de Açúcar, ainda que de muito longe. Retomamos então a conversa, que confesso, foi muito proveitosa. Em nossa última parada, já em Rio Bonito, Dona Adalgisa se arriscou mais uma vez: “Tem certeza de que não quer mesmo um biscoitinho? Você pode comer mais tarde, na pousada, quando chegar”. Aceitei, considerando que aquela atitude era feita com uma pureza ímpar. 

 Apesar de ser evangélica, Dona Adalgisa citou, durante todo o período em que esteve ao meu lado, apenas um salmo da bíblia, com o intuito de exemplificar um de nossos assuntos. Fez questão de enfatizar que as pessoas são diferentes e que a pureza está no coração de cada uma delas. Passou-me o número do seu telefone e fez um convite para que fosse até a sua casa, garantindo que, caso lá aparecesse, poderia provar do tão falado Baião de dois, além de conhecer sua família querida. Infelizmente não pude dar um abraço de despedida em Dona Adalgisa, pois ela desapareceu na rodoviária de Cabo Frio assim que encontrou a filha, que ansiosa a esperava no setor de desembarque. 

 Desse rápido encontro ficou em mim a certeza do que vivo dizendo por todas as partes: que mesmo num mundo tão complicado, recheado de crueldades e violência, ainda podemos encontrar pessoas de puro coração. Disse que adora fazer amizades e me confessou com um sorriso no rosto: “Quando te vi aqui ao meu lado assim tão sério, pensei comigo mesma: Meu Deus, será que viajarei por seis horas calada ao lado deste rapaz”? O que Dona Adalgisa não sabia era que eu havia pensado praticamente o mesmo a seu respeito, devido ao seu perfil sistemático. Jamais vou me esquecer desta tarde, no qual aprendi coisas importantes com aquela senhora de ar bem familiar, devido a sua grande semelhança com outro amigo meu, o simpático e também cearense Sr. Abel. 

 Enquanto escrevo esta crônica, já no descanso e sossego da pousada, um grupo de pessoas aqui atrás está realizando uma saudação ao Caboclo Boiadeiro. Trata-se de um terreiro de umbanda que fica quase na areia da praia. Parecem felizes nesta noite de muitos ventos em Arraial do Cabo. Eu me sinto bem, e o barulho do mar me traz grande paz e energia. Neste instante me ocorre um nobre pensamento: As pessoas, quando querem, atraem coisas boas e praticam o bem, independentemente de sorte, humor, classe social ou religião. Tudo está reservado bem aqui dentro, do lado esquerdo do peito, e só cabe a nós despertar. Assim me garantiu Dona Adalgisa. 

 • Por Luiz Machado - Arraial do Cabo, 10 de outubro de 2008.

Um comentário:

Anônimo disse...

LUIZÃOO VC É UM POETA!

ADOREEI!!

PARABÉNS!!!!!!

BJU